Rezar no Espírito com a Palavra de Deus | Palavra do fundador - Janeiro 2024

 

Foi a partir da primeira carta do Apóstolo Pedro que a nossa Comunidade recebeu a sua palavra fundadora:

“Fostes regenerados, não de uma semente corruptível, mas incorruptível, mediante a Palavra viva de Deus, a qual permanece para sempre. Com efeito, toda a carne é como erva e toda a sua glória como a flor da erva. Secou-se a erva e a sua flor caiu; mas a Palavra do Senhor permanece para sempre. Ora, é esta a Palavra que vos foi anunciada no evangelho.” (1Pd 1, 23-25)

Através do dom da Sua Palavra, Deus fala e Se comunica entrando num diálogo de amizade com cada pessoa que crê. Esta Palavra pode ser reconhecida pela Sua qualidade inigualável de amor salvífico e de eternidade, marcas do Verbo eterno do Pai, que entrou na história e na condição humana. O Apóstolo Paulo descreve esta revelação como “um advento”, um incrível mistério do caminho da Palavra, que chegou hoje aos nossos corações nos dias de hoje:

“Eu me tornei ministro da Palavra, por encargo divino a mim confiado a vosso respeito, para levar a bom termo o anúncio da Palavra de Deus, o mistério escondido desde os séculos e desde as gerações, mas agora manifestado aos seus santos. A estes quis Deus tornar conhecida qual é entre os gentios a riqueza da glória deste mistério, que é Cristo em vós, a esperança da glória!” (Cl 1, 25-27)

Na realidade, estamos falando de um “advento da Palavra”, ou seja, quando o Verbo divino irrompe no espírito e no coração do homem. Os frenesis e todo tipo de distrações que acompanham os ritmos atuais nem sempre são propícios ao recolhimento. Por isso, muitas vezes é necessário fazer violência para defender o tempo que pertence a Deus. A nossa Comunidade assume o cuidado e o serviço de comunicar o gosto, o desejo e “o apetite” pela Palavra de Deus, contida nas Sagradas Escrituras. “As Sagradas Escrituras contêm a Palavra de Deus, e, pelo fato de serem inspiradas, são verdadeiramente a Palavra de Deus”. 1

A Palavra divina também está contida na Criação, através da “sinfonia da criação”, como afirma São Boaventura: “Toda criatura é uma palavra divina, porque proclama Deus” 2.

Esta Palavra viva que ilumina, que faz arder e irradia nos corações, deve ser tornada acessível e compreensível ao maior número possível de pessoas, porque ela realiza o que diz, transformando aquele que a recebe. Para isso, teremos sempre necessidade de um intérprete-intermediário, como o Diácono Filipe que encontrava-se disponível no caminho com o etíope: “‘Entendes o que estás lendo?’ ‘Como o poderia, disse ele, se alguém não me explicar?’.” (At 8, 30-31)

Para ser interiorizada, esta Palavra deve ser ruminada. Alguns autores falam de “manducar” a Palavra. Santo Agostinho diz a esse propósito que:

É por meio da ruminação que Deus distingue os animais puros, insinuando desta maneira que o homem deve guardar no coração o que ouve, sem ter preguiça posteriormente de pensar na questão. Quando ouve, o homem assemelha-se ao animal que come; quando, porém, recorda o que ouviu, parece-se com o animal que rumina. Por conseguinte, as mesmas verdades são ditas de várias maneiras, e nos fazem pensar com gosto no que já sabemos e ouvi-lo de bom grado. O modo de explicar varia, e a antiga verdade apresenta novos aspectos pelo modo de ser explanada.” 3

O Espírito Santo vem até nós e convida-nos a rezar

Quantas pessoas fizeram esta experiência inesquecível e fundadora do Espírito que irrompeu em seus corações, desbloqueando a fonte — até então selada — da Palavra viva, tornando-a manancial e efusão da água viva da salvação. Aquele que reza não pode contentar-se com as suas próprias palavras, pois pode correr o risco de se cansar rapidamente. Quando aparece este tipo de acédia, deve-se recorrer imediatamente à escuta d’Aquele que “reza em nós”: o Espírito Santo. Sabendo que o Espírito Santo é Aquele que se “junta” imperceptivelmente ao nosso espírito, substituindo-o na oração. Porque ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no Espírito Santo.” (1Cor 12,3).

Até mesmo Paulo chega a esclarecer é o próprio Espírito Santo que assume a nossa interioridade e a nossa oração interior, sobretudo quando não sabemos rezar:

“Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois, é segundo Deus que ele intercede pelos santos. E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio.” (Rm 8,26-28)

O Espírito Santo é o nosso formador, o nosso conselheiro, o nosso lembrete interior (como o sino nos lembra o momento de rezar) e a nossa memória das palavras divinas.

“O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse.” (Jo 14,26)

O filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973) sublinhou claramente a relação entre o Espírito de Deus e a Palavra que Ele inspira em nós, na terceira estrofe do Veni Creator Spiritus:

“O Espírito Santo é palavra, porque anima o coração e o faz transbordar de palavras: ‘sermone ditans guttura’ (‘a garganta cheia de palavras’) e porque faz descer em nós, na própria substância do nosso ser, tudo o que o Senhor nos disse.” 4

Este encontro pessoal com a Palavra de Deus na ação do Espírito, quando é autêntico — é o contrário da fuga que nos desmobiliza; pelo contrário, Ele conduz-nos e faz-nos sempre voltar à oração comunitária e à comunhão eclesial, até ao ponto de desejar difundi-la no mundo inteiro. Encontramos nos Evangelhos esta vontade de comunicar, particularmente em Lucas 1,39, no relato da visita da Virgem Maria à sua prima Isabel. Esta comunicação é uma prioridade suscitada pelo Espírito, como descreve o Papa Bento XVI na sua Exortação Apostólica sobre a Palavra de Deus: “Não existe prioridade maior do que esta: reabrir ao homem atual o acesso a Deus, a Deus que fala e nos comunica o Seu Amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10, 10).” 5

Cada fiel, assim como cada comunidade eclesial, não pode tirar a sua força, o seu vigor vocacional, o seu crescimento e a sua criatividade senão da escuta, da Lectio Divina diária, da celebração litúrgica e do estudo da Palavra de Deus. Quando a Palavra de Deus é comunicada, anunciada, proclamada, celebrada, estudada e colocada em ação sempre se dá um acontecimentopentecostal:

“‘Na Igreja há um Pentecostes também hoje, ou seja, que ela fala em muitas línguas; e isto não só no sentido externo de estarem nela representadas todas as grandes línguas do mundo mas também, e mais profundamente, no sentido de que nela estão presentes os variados modos da experiência de Deus e do mundo, a riqueza das culturas, e só assim se manifesta a vastidão da existência humana e, a partir dela, a vastidão da Palavra de Deus’. 6 Além disso, pudemos constatar também um Pentecostes ainda a caminho; vários povos aguardam ainda que seja anunciada a Palavra de Deus na sua própria língua e cultura.” 7

A cristologia da Palavra

O próprio Filho de Deus, Palavra Eterna do Pai, veio até nós como Palavra definitiva e eterna, falando-nos através de palavras humanas. São João da Cruz é frequentemente citado como tendo dito: “Deus nos disse tudo no Seu Filho”… A verdadeira citação, de verdade, é esta:

O Pai Celeste disse uma única palavra: é o Seu Filho. Disse-a eternamente e num eterno silêncio. É no silêncio da alma que Ele se faz ouvir.” 8

Todas as expectativas e pedidos da alma foram atendidos em Cristo. É por isso que, às vezes, a alma curiosa ou ávida por novidades não recebe luzes particulares. São João da Cruz continua esta intuição escrevendo na Subida do Monte Carmelo:

Se for de teu desejo ter outras visões ou revelações divinas, ou corporais, contempla meu Filho humano e acharás mais do que pensas, conforme disse também São Paulo: ‘Porque nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente’ (Cl 2, 9).”9

Com efeito, toda a missão do Filho de Deus encontra o seu cumprimento no Mistério Pascal: o Verbo faz-se silêncio, “sem palavras”, dando lugar à “linguagem da cruz” (1Cor 1, 18). “Cristo, Palavra de Deus encarnada, crucificada e ressuscitada, é Senhor de todas as coisas; é o Vencedor, o Pantocrator, e assim todas as coisas ficam recapituladas n’Ele para sempre (cf. Ef 1, 10).” 10 “Na Páscoa, Deus revela-Se a Si mesmo juntamente com a força do Amor trinitário que aniquila as forças destruidoras do mal e da morte.” 11

O realismo da Palavra

Deste modo, a realidade nasce da Palavra, como creatura Verbi, e tudo é chamado a servir a Palavra.” 12

Aquele (e aquela) que se dedica à Palavra do Senhor, meditando-a dia e noite para a pôr em prática na sua vida cotidiana, verificará que não foge da vida real da criação, mas, pelo contrário, está mais em contato e em comunhão com a realidade criada. Com efeito, “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1,27).

A Palavra de Deus não só revela cada ser a si mesmo e ao seu próprio mistério, mas abre a sua inteligência à história e ao mundo que também é seu:

Cristo Redentor (…) revela plenamente o homem a si próprio.” 13

Este realismo em relação à Palavra:

Isto permite-nos reconhecer plenamente os dons preciosos recebidos do Criador: o valor do próprio corpo, o dom da razão, da liberdade e da consciência. Nisto encontramos também tudo aquilo que a tradição filosófica chama ‘lei natural’. Com efeito, ‘todo o ser humano que atinge a consciência e a responsabilidade experimenta um chamamento interior para realizar o bem’ 14 e, consequentemente, evitar o mal.” 15

Uma grande “sinfonia” de oração

Mais uma vez, é o Espírito do Senhor que nos revela o momento mais forte da vida cotidiana que vivemos. A Missa que celebramos é objetivamente o cume da montanha, o ponto teológico mais importante e mais alto do dia. Mesmo que seja celebrada de uma forma muito pobre e remota. No decurso da Missa, de fato, todas as formas de oração são reunidas como todos os instrumentos de uma “grande sinfonia”. A Igreja, seguindo os passos da tradição judaica, escolheu celebrar a liturgia cotidiana desde o início: “Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações.” (At 2,42) Marthe Robin costumava dizer estas palavras, vivendo-as intensamente: “Cada vida cristã é uma ‘missa’ e cada alma neste mundo é uma ‘hóstia’.” 16

O fiel vive a Missa como um encontro com o Senhor, composto por três procissões:

1. Uma entrada em procissão, para se colocar na presença acolhedora do Senhor três vezes Santo, para reconhecer seus pecados e faltas, e depois para rezar escutando (ou escutar enquanto reza) as três leituras do dia, seguidas da homilia. Proclama a fé da Igreja e intercede por aqueles que se confiam à oração da comunidade, depois oferece a sua pessoa e a sua oferta unindo-as à hóstia e ao vinho colocados sobre o altar. Associa-se à epiclese do sacerdote, invocando o Espírito Santo sobre os dons e sobre a comunidade, e dirige-se depois ao Pai com a oração de Jesus.

2. Depois de ter reconhecido o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, avança em procissão para receber o Pão da Vida. Se o alimento material é assimilável, o Pão de Cristo dá-lhe vida, assimilando-o: “Aquele que de mim se alimenta, viverá por mim” (Jo 6, 57).

3. Depois de ter sido incorporado ao Senhor pela Sagrada Comunhão e ao seu Corpo, que é a Igreja, a liturgia eucarística, como um sopro, envia-o de novo em procissão para os seus irmãos e para o mundo, para os servir. Na sua Exortação Apostólica “Verbum Domini”, o Papa Bento XVI falou de uma “sinfonia da Palavra”, de uma única Palavra que se exprime de diferentes maneiras: como uma “ sinfonia a diversas vozes” 17. Todos os dias, a Igreja no mundo inteiro reza os mesmos salmos, os mesmos cânticos inspirados da Sagrada Escritura, a mesma Lectio Divina meditada.

Seja na beleza polifônica das quatro vozes, na harmonia do canto gregoriano, nas respostas litânicas do coro bizantino ou nas pobres orações balbuciadas de algumas piedosas e solitárias mulheres na Missa, é sempre e em toda a parte a mesma: grande, litúrgica e cósmica sinfonia que se eleva para Deus. O Papa Francisco viu o ano de 2024, em preparação para o Ano Santo, como uma “sinfonia de oração”. Como não ouvir nestas palavras do Pastor Supremo da Igreja o desejo de uma imensa variedade de orações, em diversas línguas e culturas, que se elevam a Deus no fervor e na unidade do Espírito do Senhor, como no primeiro Pentecostes?

Fontes:

1 Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, sobre a Revelação Divina,

n.24, 1965.

2 São Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, II, 12.

3 Santo Agostinho, Comentário Sobre o Salmo 47(46).

4 Cf. Jacques Maritain, La pensée de Saint Paul, O pensamento vivo de

São Paulo, Ed. Parole et Silence, p. 183.

5 Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, 2010, n. 2.

6 Papa Bento XVI, Discurso à Cúria Romana, 22 de dezembro de 2008.

7 Idem., Verbum Domini, n. 4.

8 São João da Cruz, Conselhos e Máximas, 147.

9 Idem, Subida do Monte Carmelo, Livro II, cap. 22.

1 0 Papa Bento XVI, Verbum Domini , n . 1 2 . / 11 Ibid., n. 13. / 12 Ibid.n. 9.

13 São João Paulo II, Carta Encíclica Redemptoris Missio,1990, n. 2;

cf. Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 1965, n. 22.

14 Comissão Teológica Internacional, À procura de uma ética universal: novo

olhar sobre a lei natural, Cidade do Vaticano, 2009, n. 39.

15 Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 9.

16 Cf. Transmissão oral.

17 Cf. Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 7.